Moda

Quatro estilistas surpreendem no último dia da Alta Costura em Paris

01 fev 2021 • por Nina Kauffmann • 0 Comentários

Se a alta-costura é o laboratório da moda, então seus cientistas mais avançados tendem a apresentar as novas experiências no último dia de apresentação das coleções para a primavera-verão 2021, na Semana da Alta-Costura de Paris.

Foi o que aconteceu na quinta-feira (28 de janeiro), quando um quarteto de criadores – com apenas um radicado em Paris – mostrou uma moda de pensamento livre e de fluxo independente que desbravou novos caminhos tanto na moda e nos materiais como em seus conceitos e misturas estilísticas.

A procura de um equilíbrio entre a natureza e a ciência passa a se refletir na moda como uma preocupação dos novos tempos, caso a mentalidade não mude em termos de aceitação, revendo os afetos entre humanos e em relação ao planeta. Uma consciência que tem crescido com a COVID-19.

Yuima Nakazato: a alta-costura sem fios

Quando se trata de tecidos poucos vão mais além do que Yuima Nakazato, um jovem talento japonês que trabalha com proteína fabricada e bio-smocking para criar estruturas tridimensionais.
 
“Entre humanos e roupas há uma memória invisível”, entoa o narrador oculto no seu vídeo, antes de surgirem imagens do mar, ondas, espuma e a linha costeira do Havai.

O tema gira em torno do conceito de memória mapeado no Atlas, um dos indicadores que nos diz de onde viemos e para onde vamos. O vídeo foi também uma conversa com apenas uma personalidade, Lauren Wasser, a modelo ativista norte-americana que perdeu ambas as pernas devido à Síndrome do Choque Tóxico (SCT)..

Vestida com uma camiseta branca simples de gola delineada por pérolas, Wasser fala da sua fonte de inspiração e da força do desenho a partir do mar: “Quando observamos as ondas batendo areia e seu rugido na rebentação (…), penso que é uma força. Observamos o mar e tudo parece tão calmo e pacífico, mas debaixo de água acontece tanta coisa e há tanto poder que não podemos ver e que eu sinto está definitivamente conosco, carregamos muito poder que não vemos, e vendo o mar em põr-do-sol é como um aviso para mim”.



E a voz off questiona: “Você pensa que a moda atingirá um novo nível ao se fundir com o campo médico?”
 
“Tendo experimentado duas pernas (de carne e osso) e depois as pernas que tenho agora (artificiais), me movendo da forma como me movo, e correndo como corro, definitivamente sinto que vamos todos precisar de alguma forma de tecnologia para nos fazer avançar e para sermos seres melhores no futuro e eu estou mesmo à frente na curva”, responde Lauren Wasser enquanto a máquina fotográfica desce até aos membros inferiores artificiais. “Sim, eu sou o futuro”, sorri.
 
Segue-se Yuima Nakazato a falar sobre a coleção intitulada Artesanato: Encapsulated Reminiscence(Artesanato: Reminiscência Encapsulada), desenvolvida a partir de uma grande ideia: o recurso à Boro – a técnica japonesa de remendar vestuário que dá origem à verdadeiras obras de arte criadas a partir de fragmentos e usadas por centenas de pessoas.
 
“As roupas esculpem as suas memórias” diz. “Herdando o espírito da Boro, o fundi com a tecnologia moderna. As aranhas desenvolveram uma forma de restaurar a estrutura dos seus fios, transformado pela água tanto quantos forem necessários no processo da sua evolução. Com a sabedoria da natureza e a tecnologia de vanguarda, eu fui capaz de criar tecidos que mudam de forma”, explicou Yuima Nakazato, estudante de Moda na Antuérpia, que lançou a sua própria marca assim que terminou a faculdade.

No vídeo, Nakazato mostra suas novas ideias para tecidos que vagueiam entre a natureza e a ciência e que, ajustando-se à forma de tiras emaranhadas, flutuam em suave movimento no tanque de água de um laboratório ao estilo de Damien Hirst. Antes de Lauren Wasser aparecer envolta em bruma, insinuando fios de cabelo de medusa em uma figura maravilhosa com roupas psicodélicas esculturais que pareciam ter sido fiadas biologicamente em vez de costuradas com agulha, linha e dedal.

Entre as teias de tarântulas gigantescas e o movimento ritmado do mar, Yuima Nakazato cria volumes pregueados em acordeão que desenham todo um caminho do corpo até à cabeça de Wasser coroada por um capacete bélico como um elmo de ficção científica. Este pode ser interpretado, também, como decorado com as cobras dos fios de cabelo de medusa cuja cabeça foi decepada e tombou no mar, transformando-se em corais vermelhos. Há sempre, portanto a magia da mudança no belo ou no menos aceitável, na morte que gera a nova vida, na natureza que dita tudo.

“A vida de Lauren Wasser se sobrepõe à nossa era difícil, uma vez que esta era precisa de regeneração. E sua capacidade de superar as dificuldades representa essa necessidade”, explicou o designer de moda, via Zoom a partir do seu estúdio no bairro hipster Shibuya, situado em sua cidade nativa, Tóquio.



Com Yuima Nakazato, um único vestido pode ser desdobrado e transformado em múltiplos desenhos.

“Podem ser criados oito looks a partir de um único vestido, uma vez que não há fios, é muito, muito maleável”, sorriu Nakazato, cujo quadro de humor foi a colagem de paisagens e culturas e rostos, naquilo que chamou de um “sobre-amostragem de arte abstrata e moda”.

Aelis: aranhas em LSD

Spiders (Aranhas) lê-se no vídeo apresentado pela Aelis, antes da modelo surgir em uma galeria de arte, supostamente com tiques e poses característicos de aranhas que assim desempenham também um papel crucial nas teias da Aelis. Isto, porque a designer Sofia Crociani se inspirou em imagens de investigação científica dos anos 60 onde observou aranhas sob a influência de drogas (álcool, café e LSD) e teias que estas fiaram.



“Os resultados foram incríveis e vieram de algo que não conseguiam controlar”, explicou Crociani. A designer italiana passou o lockdown nas bucólicas colinas toscanas de Val d’Orcia, cuidadosamente cultivadas, um território que se estende do sul das colinas de Siena ao Monte Amiata.

Embrenhada na calma da paisagem rural, Sofia Crociani começou a passear pela natureza e através dos insetos, descobrindo as incríveis estruturas que estes conseguem gerar.

“Portanto, a minha mensagem está relacionada com a ecologia. De como devemos começar a descolonizar a natureza. E com o Covid a consciência disso tem crescido”, explicou.

A ideia foi apresentada em um vestido cocktailtecido com teias de renda ao estilo Barely There; ou em um vestido de pradaria enfolado com a parte superior em tule, na forma de um inseto com adição de drogas.

Depois do preto ou branco, talvez porque a viúva-negra real apresenta manchas laranja com branco, amarelo, dourado ou mais raramente vermelho. Talvez daí o preto seguido de looks em branco e do véu que tudo envolve na sua transparência fúcsia. 

Como se todas as modelos contassem histórias dessa viúva-negra que tece e vai revelando os diferentes looks, reproduzindo os gestos de aranha para o vídeo assinado por Jacopo Godani que as identifica no interior da galeria parisiense de Suzanne Tarasieve, no elegante bairro do Marais.

E não por acaso têm como pano de fundo duas grandes telas de Georg Baselitz. “Um artista incrível que também pensou em perder o controle”, opina a costureira via Zoom pré-show.

Rahul Mishra: de Taj a Raj

Rahul Mishra – o primeiro designer indiano a expor na Semana da Alta-Costura de Paris – recebeu o abalo inicial da sua coleção ao ver a aclamada nova série Blue Planet II de David Attenborough, e o resultado foi uma coleção frequentemente requintada e uma canção de amor visual à natureza e ao artesanato indiano tradicional.


Intitulado Dawn (Aurora), o vídeo foi gravado no melhor local da época atual da alta-costura parisiense, no interior de uma pedreira de mármore imaculado, no estado indiano do Rajastão, que parecia uma paisagem lunar. O mesmo tipo de mármore branco usado no fabrico do Taj Mahal; e tal como a princesa persa muçulmana que se tornou imperatriz mongol por casamento, sendo sepultada no referido mausoléu de Agra (Índia), estas modelos pareciam princesas imensamente divinais.
 
O conceito-chave de Mishra foi o de utilizar anéis mágicos e formas de cogumelo em amostras de tecidos de croché com cristais e lantejoulas pregados, criando densas nuvens de cor que se destacam na pedra que leva as marcas de um tempo infinito registrado nos muitos reinos que passaram por esta região e seus saberes ancestrais. 


O vídeo mostra as mãos e os teares que tecem estes tecidos tão delicados que ganham formas de uma planta topográfica. Os padrões, as partes que se harmonizam e formam o todo que as modelos interiorizam, deitadas na imensidão desértica da pedra branca. Curvas de uma geografia e sensibilidade únicas em vestidosde comprimento de camisa bouffant; e em vestidos cocktailscompostos como se fossem vales ondulantes de lantejoulas.

Mishra citou Alice Walker, a poetisa autora da obra The Color Purple (A Cor Púrpura), dizendo: “Na natureza nada é perfeito”. No entanto, havia um verdadeiro sentido de perfeição nos deslumbrantes ornamentos desta coleção: pequenas e delicadas flores de seda cosidas em mangas de tule nobremente exóticas ou fabulosos vestidos de flamenco de mulher fatal.

Em última análise, a mensagem que passou foi a de uma necessidade absoluta de expandir a paisagem mental, mesmo enquanto a humanidade continua a destruir o planeta.


Na enorme fantasia das grandes pétalas de crochê e seda no final – seu trio de modelos hipnotizantes, Laura Gavrilenko, Mansi, e Nitin Baranwal –vagueia pelo lago da pedreira até ao desfiladeiro e junta-se, espraiando-se num tronco de árvore petrificado que parece estar à deriva. Estilo de primeira classe de Priyanka Yadav e uma visão que Sir David certamente teria adorado.

Sterling Ruby: xamã californiano – chic

O artista californiano Sterling Ruby, com sua marca estranhamente denominada S.R. Studio. LA. Ca., estreou na alta-costura, embora a partir de Los Angeles e com uma coleção que apresentava apenas uma tênue relação ao métier da alta-costura.



Denominada Apparitions (Aparições), a coleção de Ruby ressaltava belezas funky,  através de fundações de betão estilhaçado de um parque de paintball esquecido na Califórnia, que quase poderia ter sido uma instalação de arte do próprio Sterling Ruby, uma vez que o seu trabalho é muitas vezes apresentado em grandes instalações densamente compactadas.

Algumas modelos com vestidos de gola alta em veludo de efeito mosqueado, ligeiramente puritanas; outras em calças jeans lavadas com ácido, sujas, desgastados, casacos coloniais e chapéus. Isto provavelmente não soa muito bem, mas a imagem causou um grande impacto.

O vídeo foi gravado em 19 de janeiro, o último dia de Trump como presidente dos Estados Unidos. Nas notas do programa da coleção havia a explicação que se tratava de uma meditação sobre a visão da América como deveria ser divinamente ordenada. Mesmo que tenha sido difícil conseguir perceber isso só de olhar para as roupas.

Havia ternos avantajados com calças masculinas em xadrez laranja e uma versão vermelha com painéis pretos, ideal para a abertura de uma galeria de arte ou para usar nos bastidores. Por outro lado, os casacos de lã de Sterling, os vestidos e as bolsas de lã, foram acabados com bolas de lã que faziam referência ao seu próprio trabalho de arte têxtil.

Os primeiros passos de Ruby na alta-costura foram suas colaborações com Raf Simons enquanto esteve na Calvin Klein. Muito francamente, ele ainda tem um longo caminho a percorrer para se tornar um designer de moda, que dirá um couturier.

Como diz o cantor-compositor e músico Michael Gira, da banda de folk-rock Angels of Light: “Há aço no ar e sangue nas rodas… Pela promessa de água andarei de joelhos”.

Xamã-californiano em vez de alta-costura, porque não? É o laboratório da moda e Sterling realizou algumas experiências.


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