A Misci, do diretor criativo mato-grossense Airon Martin, é um marca multidisciplinar que, ao produzir roupas, acessórios e mobiliário, busca materializar a perspectiva de seu autor sobre a essência do design brasileiro: com maestria e uma estética contemporânea e impecável, traduzir a miscigenação dos elementos regionais do Brasil, fugindo do óbvio e do caricato. Essa mescla, aliás, é parte fundamental do repertório de Airon, que cresceu em uma das muitas regiões do bioma amazônico e vivenciou toda a presença e importância desses elementos na expressão das pessoas.
Em sua quarta participação na São Paulo Fashion Week, o diretor criativo mostra a evolução deste DNA marcante emoldurando as peças e sua construção numa cenografia em que o produto é o protagonista, no desfile presencial marcado para as 21h30 do dia 2 de junho. Será no Komplexo Tempo, no bairro paulistano da Mooca, cuja origem e história estão ligadas à indústria têxtil.
A coleção, que protagoniza a segunda apresentação física da Misci no SPFW, é trabalhada inteiramente com matérias-primas nacionais e com a abordagem mais sustentável possível. Isso, como um parâmetro no design e no mercado de moda no país seria, segundo Airon, o Paraíso Terrestre. E é de lá que ele traz a figura de Eva como eixo para traduzir o potencial das mulheres que, no Brasil, são as forças motrizes de suas casas e famílias. A abordagem se dá pela perspectiva das mães solo, assunto para o qual a marca traz visibilidade desde 2020, quando iniciou a campanha Mainhas, para estimular o suporte a mulheres que criaram e criam os filhos sozinhas.
“Falo desse lugar porque ele também é muito meu. Sou filho e neto de mães solo, e por isso cresci cercado de mulheres batalhadoras, que trabalhavam para cuidar sozinhas da família”, conta Airon.
Por entender bem serem as mulheres que zelam e cuidam do que faz o país acontecer e do que o representa, ele batizou a coleção de EVA – Mátria Brasil, para lançar luz sobre a nação de mulheres em que vivemos.
A força materna também se destaca no casting, um dos mais estrelados da SPFW N53. A maioria das participantes são filhas de mães solo, incluindo a top model da apresentação, Carol Trentini. Esse poder é reforçado com a mulher transgênero Ana Carolina Apocalypse, que também cruza a passarela. Mãe solo que passou por transição de gênero já na vida adulta, Ana Carolina é a primeira idosa trans a desfilar na SPFW. Autenticidade e coragem não faltam a esse grupo, que também será abrilhantado por uma das mais talentosas figuras surgidas na música brasileira recente, a cantora pernambucana Duda Beat. Com ele, Airon introduz elementos da identidade brasileira em 44 looks que mostram quem é a Eva da Misci. Ela é a expressão estética da mulher essencial do Brasil, com toda a bagagem que tem, através do olhar afiado do diretor criativo, sempre voltado para criações de inspiração regional que são feitas para contextos globais.
A paleta de cores da coleção revela a maneira singular com que Airon trabalha os elementos característicos nacionais. O vermelho é um bom exemplo disso. A cor, frequente no repertório da marca, remete à origem do país — o pau-brasil. A árvore, que atraiu os europeus por sua utilização como tingimento de tecidos no tom de brasa, mostra que o Brasil foi batizado sob o signo da moda. Acompanham o vermelho os tons de azul e verde, símbolos da biodiversidade brasileira, pontuados pelos neutros marrom e off-white. Pela combinação variada das cores e a mistura de suas cargas simbólicas, a coleção procura mostrar que as representações nacionais não estão presas a determinadas visões, e podem se ligar e unir todos que acreditam num país melhor. Prova é o arremate de looks da apresentação com um boné verde-amarelo. Desenvolvido especialmente para o desfile — e usado como convite — o boné tem a bandeira brasileira bordada, acima do nome EVA – Mátria Brasil.
Os materiais da coleção, em sua maioria obtidos por processos que envolvem responsabilidade ambiental, são trabalhados de forma a gerar o mínimo de desperdício possível. A seda utilizada nas peças é feita com fios da empresa brasileira ABRATAC, que também fornece o material para a grife francesa Hermès. Outro destaque entre os tecidos é o jacquard em fio tinto de algodão orgânico, cultivado na Paraíba e que mimetiza as florestas tropicais do Brasil. Na passarela, um dos looks desse material será desfilado por Enzo Celulari, que é filho dos atores Claudia Raia e Edson Celulari e desenvolve trabalho contra o desmatamento na Amazônia.
O couro é outra matéria-prima importante na coleção, e uma das preferidas de Airon. A forma circular de trabalhar os materiais também vale aqui: são usados resíduos da indústria alimentícia, curtidos e tratados em curtumes sustentáveis. Com esse couro especial, foram confeccionadas peças de roupa e os cinco modelos de bolsas da coleção. As bolsas são feitas de couro de pirarucu, peixe muito consumido no Norte do país, que também está em tops da coleção. Os brincos, aneis e pingentes que compõem os looks são uma parceria da Misci com a joalheria Bravio Studios, e tem formas orgânicas pontuadas por formas brutas feitas em pepita. A base das peças é feita de prata com detalhes de banho de ouro.
Os pares de sapatos do desfile também foram desenvolvidos pela própria Misci, com saltos baixos aludindo aos “pés no chão” necessários para o atual estágio do Brasil. “Estamos num momento muito importante, e precisamos de consciência social e de classe para reconstruir a nossa indústria e o nosso país”, afirma Airon. O modelo é coberto de chupetas com a base forrada em couro, e alude à necessidade de amadurecimento e de compreensão, considerando o contexto do coletivo, dos desafios que a Mátria Brasil atravessa pelos seus filhos, todos que nela vivem.