De vez em quando, um desfile se torna um comentário sobre nossos tempos. Mas nem sempre tão marcante quanto o desfile de Demna Gvasalia para a Balenciaga, realizado no domingo (6), com uma coleção dedicada ao exílio. Gvasalia é um designer que se define como um “eterno refugiado”.
Apresentado em um cenário notável, um espaço coberto de neve e paredes de vidro, com 60 metros de diâmetro, no qual seu elenco caminhou sob ventos turbulentos, com suas roupas voando verticalmente. Vários estavam seminus, em roupas íntimas e cobertores minúsculos.
Em uma temporada em que a moda parece em grande parte irrelevante, dados os horrores da invasão russa da Ucrânia sendo projetados por toda parte e constantemente ao redor do mundo, foi importante testemunhar uma declaração estética de uma pessoa que foi vítima da guerra.
Em 2013, a família ortodoxa de Gvasalia foi forçada a deixar a casa da família na Geórgia, em meio à uma violenta guerra civil na qual tropas russas apoiaram separatistas na região da Abkhazia. Isso levou à uma varredura étnica e mais de 200.000 georgianos se tornaram refugiados. Em sinal de respeito, no desfile de domingo, cada convidado recebeu uma camiseta amarela e azul com a bandeira ucraniana.
Para dar inicio ao desfile, Demna recitou um poema em ucraniano, que pôde ser escutado pelos alto-falantes, antes que a primeira modelo aparecesse: “Até que você seja acorrentado e os inimigos amarrem suas mãos, seus filhos fiéis estarão ao seu lado. Com espadas nas mãos em guarda, eles juram viver e morrer com você. Nossas bandeiras nativas, embora cobertas de batalhas sangrentas, nunca serão cobertas de vergonha”, disse Demna, em um texto traduzido pelo aclamado documentarista ucraniano-americano Andrew Tkach.
Suas modelos estavam vestidas com capas/vestidos furiosamente esvoaçantes, com bolsas que pareciam sacos de lixo. A maioria do elenco carregava esse tipo de bolsa, como se tivessem pegado seus bens mais valiosos enquanto fugiam de suas casas. Gvasalia havia originalmente sonhado com o set como um comentário sobre o que a neve poderia significar no futuro.
“O futuro é agora, porque quando você vai às estações de esqui não há neve. Trata-se de visitar um mundo daqui a 50 anos, onde você terá que ir a algum lugar artificial para experimentar o clima que agora damos como certo, infelizmente”, explicou ele após uma tempestade de elogios por seu show apocalíptico.
Um momento divisor de águas, com mulheres jovens vestidas principalmente em preto, com versões mais finas do volume característico de Demna em macacões grossos, vestidos de coquetel flamenco e vestidos de governanta.
Neste desfile misto, os homens surgiram em jeans pretos desalinhados, botas de dragão ou capas torcidas, carregando seus sacos de lixo. Todos com óculos de sol Balenciaga para se proteger das rajadas de neve.
“Esta semana, eu me vi há 30 anos em um abrigo, como alguns meninos e meninas ucranianos hoje. Sem saber se o telhado estava prestes a cair. Então essas pessoas seminuas abrindo caminho pelo vento é algo muito pessoal”, disse Demna, emocionado.
Ele se referiu ao programa como “meu capítulo 2”, sendo o capítulo 1 seu desfile antes da Covid-19, em Paris, onde o elenco caminhou em um lago raso, em uma referência bíblica.
“Quando comecei esta temporada eu queria algo positivo, para abrir espaço e esperança, mas dadas as circunstâncias tudo mudou. Isso acontece muito com meus desfiles, de certa forma”, disse o estilista, vestindo a camisa amarela e azul.
Grande parte da coleção consistia em agasalhos embaláveis e trench coats em tecidos muito leves. Às vezes parecia que o elenco poderia ter feito as roupas pessoalmente. Muitos looks eram jeans cortados, que se transformavam em regatas, e bolsas costuradas formavam duas botas de salto alto.
“Eu já fui um garoto georgiano que costumava se vestir com cortinas e brincar com as botas da minha mãe e eu era punido por isso. Então hoje é uma espécie de ‘vingança’”, riu Demna.
Conhecido por adicionar o monograma Balenciaga a quase tudo, Demna embrulhou várias modelos em fita com logotipo, para tornar o monograma menos burguês e majestoso. “Ao envolvê-las com a fita, já não é mais a expressão de uma mulher rica andando por uma área rica”, disse ele.
Sua trilha sonora foi teatralmente da Europa do Leste, uma sonata para piano executada por Johnandrew Slominski. A música ucraniana tocava continuamente nos bastidores.
Ao ser questionado se ele tinha alguma mensagem para Vladimir Putin depois de quase duas semanas de guerra, Gvasalia respondeu calmamente: “Minha única mensagem é este show. O fato de que apenas pessoas inocentes sofrem. Aqueles que morrem na guerra. Eu experimentei isso. Eu bloqueei isso da minha mente por 30 anos. Mas esses acontecimentos recentes trouxeram de volta toda essa dor. Então a mensagem é que o que importa na vida é a própria vida, o amor humano e a compaixão…A moda, de alguma forma, não importa agora”.